Nunca Me Sonharam e o sequestro das histórias - Filme Documentário

Documentário comove o público, mas é peça de propaganda de projetos de privatização da gestão escolar e para a Reforma do Ensino Médio.
REDAÇÃO 6 de setembro de 2017

Por Fernando Cássio

Para celebrar o Dia Internacional da Juventude, o acesso ao documentário Nunca me Sonharam (Maria Farinha Filmes, 84 min) foi liberado ao público na plataforma Videocamp entre 12 e 14 de agosto. O filme estreou no início de junho, e, segundo seus idealizadores, “nos convida ao diálogo sobre a realidade do ensino médio nas escolas públicas do Brasil”. Dirigida por Cacau Rhoden e patrocinada pelo Instituto Unibanco, a obra revela um mosaico de vozes em que estudantes brasileiros narram sonhos e visões sobre o futuro. Os relatos são fortemente vinculados às experiências desses jovens no Ensino Médio, compondo um quadro tão comovente quanto preocupante da educação pública brasileira e das desigualdades sociais no País. As falas dos estudantes são entremeadas por depoimentos de especialistas, que conduzem a linha narrativa do filme entre os aspectos psíquicos, afetivos, pedagógicos, econômicos e sociais que forjam e sustentam as relações entre a escola e a juventude.

Algumas críticas à obra reconhecem a sua capacidade de mobilizar reflexões sobre a desigualdade social no Brasil e o valor da educação (Folha de S. Paulo), a centralidade das vozes da juventude (O Globo), e a sua diversidade e força emocional (Nova Escola). Outra crítica aponta que o discurso dos especialistas, embora pertinente, soa como um gesto de desconfiança na potência dos personagens e dos espectadores (Revista Educação), e uma última apreciação (Reuters Brasil) assinala que a estética do filme se assemelha mais à de um filme institucional que a de um documentário.

Num sentido oposto ao do “cinema inútil” a que já se referiu João Moreira Salles, Nunca me Sonharam é um filme decididamente útil. Envolvente, esforça-se para destilar as experiências escolares das juventudes e incitar o debate público sobre os anos finais da educação básica pública no Brasil. Monotônico, retalha sistematicamente as narrativas dos jovens e se aprofunda pouco nas histórias individuais. Duas notáveis exceções são as histórias de Felipe de Lima (Nova Olinda/CE), cujo depoimento dá título ao filme, e de Francisco Ronildo da Silva (Campos Sales/CE), jovem que retornou à escola graças a um sistema de “busca ativa” gestado na comunidade escolar.
A estética multivocal insinuada pelas mais de cem entrevistas é apenas aparente: a clivagem dos depoimentos em trechos ligeiros e com pouca nuance é a forma adotada para construir uma narrativa única, em que as falas cumprem uma função essencialmente reiterativa. O desenvolvimento do argumento fica por conta da divisão do longa em blocos temáticos, nos quais diversas vozes são convocadas e, meticulosamente organizadas, transformam-se em uma só.
Trecho do documentário Nunca Me Sonharam. Créditos: divulgação

A linha de raciocínio é simples: os jovens sonham – seus sonhos não cabem nas escolas – o país não está fazendo nada por sua juventude – algumas experiências escolares, apesar disso, podem ser transformadoras – há uma grande expectativa de “mudança” por parte da juventude.

A trilha sonora original, quase ininterrupta, impede que o silêncio seja constitutivo da fala. Os violinos se avolumam no final da película, à medida em que os relatos mais perturbadores vão sendo amenizados por uma vigorosa voz social, que prenuncia a chegada de uma vaga e abstrata “mudança”. É a exortação ao engajamento da audiência em alguma forma de luta (igualmente abstrata) pela transformação da educação do país.

Nada disso diminui a força individual das palavras desses jovens – seus relatos são verdadeiros e potentes, pungentes e esperançosos –, mas é a “mensagem” dos realizadores, carreada pela voz supostamente coletiva que constroem, o que parece realmente importar em Nunca me Sonharam.

Daphne Patai, no primeiro capítulo de seu livro História oral, feminismo e política (Letra e Voz, 2010), nos lembra que histórias orais não são transparências, e que por conta disso devemos ter sensibilidade às palavras em si mesmas. Com isso ela nos adverte para o risco de que as narrativas sirvam apenas como pretextos para a análise do mundo em que tomam forma, sendo, por isso, transparentes.

Se os relatos dos estudantes são desconcertantes, se o filme sensibiliza ou emociona, tudo isso importa menos do que a função cumprida pelos depoimentos editados: dar corpo à narrativa que convém aos autores do longa. As histórias de Nunca me Sonharam são, portanto – e infelizmente –, transparentes.


A beleza do filme é um convite para a fruição sensível daquilo que ele enuncia – e, talvez por isso, ao esquecimento das condições dessa enunciação. O historiador Jean-Pierre Albert aponta que “o significado de uma mensagem não pode ser estabelecido na ausência de determinados dados de situação, vinculados às modalidades e circunstâncias de sua enunciação”. Com isso em mente, e uma vez que o longa é centrado na mensagem e não nas histórias, o contexto de produção da narrativa assume um novo relevo.

As entrevistas foram realizadas com alunos de oito estados – incidentalmente, aqueles que, junto com Minas Gerais e Mato Grosso do Sul, estabelecem parcerias com o Instituto Unibanco, em particular através de seu principal projeto: Jovem de Futuro.

De acordo com o Instituto, o projeto “foi estruturado com base na premissa de que uma gestão de qualidade, eficiente, participativa e orientada para resultados pode proporcionar um impacto significativo no aprendizado”. A atuação do Jovem de Futuro nos estados e escolas parceiros segue um Circuito de Gestão que inclui metas, diagnóstico, planejamento, execução, monitoramento, avaliação e, por fim, a ampla disseminação. A escola passa a ser gerida dentro de uma lógica eminentemente empresarial e, como contrapartida, pode divulgar os resultados de suas ações através dos canais de comunicação do Instituto Unibanco, inclusive nas salas de cinema.

Embora as informações sobre esse tipo de parceria público-privada não estejam facilmente disponíveis nos portais das secretarias estaduais de educação, textos em blogs regionais relacionam projetos do Instituto, especialmente o Jovem de Futuro, a quase todas as escolas mostradas no filme. Mas o público – a quem o trabalho é apresentado como um “documentário” – é privado de qualquer informação (até mesmo nos créditos) sobre o fato de a escolha dos estados, escolas e entrevistados estar baseada no mapa de parcerias do Instituto Unibanco.

No perfil da Missão do Brasil junto à ONU no Facebook, as hashtags #nuncamesonharam e #jovemdefuturo acompanham a divulgação da exibição do filme na III Reunião do Comitê Diretivo da Agenda 2030 de Educação, em Nova York. A produtora e a distribuidora do filme têm recomendado a utilização dessas mesmas hashtags na divulgação das sessões de exibição do longa.

É fora do cinema, no entanto, que se conhece a finalidade do documentário. No seminário Desafios Curriculares do Ensino Médio: Flexibilização e implementação, realizado pelo Instituto Unibanco na semana de 20 de junho, o clamor por mudanças que emerge do filme foi canalizado para a defesa de uma nova proposta para a flexibilização curricular do Ensino Médio brasileiro, na esteira da aprovação da Lei n. 13.415/2017 (Reforma do Ensino Médio).

Participaram do evento todos os interessados na Reforma do Ensino Médio: Governo Federal, gestores de redes estaduais, institutos e fundações empresariais, Conselho Nacional de Educação, sistema S, editores de materiais didáticos. O “documentário” foi exibido em sessão especial durante o Seminário, mas também projetado no saguão e citado inúmeras vezes como justificativa para a Reforma do Ensino Médio nos moldes propostos pelo Instituto Unibanco. Apoiado no know-how de seus projetos e parcerias e na narrativa do longa, o economista Ricardo Henriques, superintendente-executivo do Instituto Unibanco, e que coassina o argumento de Nunca me Sonharam, insiste naquilo que tem denominado “sequestro dos sonhos dos jovens”.

O Instituto tem investido, junto a outras fundações empresariais, na realização de encontros focais com jovens e adultos para discutir sonhos, expectativas de futuro, a escola que desejam. Eles servem para medir a temperatura das resistências docentes e discentes à Reforma do Ensino Médio, auxiliando o Unibanco na construção de uma proposta de flexibilização curricular mais palatável ao professorado, aos gestores escolares e aos estudantes. Mais atraente, por conseguinte, à verdadeira clientela: os gestores das redes estaduais, cuja atenção às limitações objetivas de suas redes escolares concorre com o receio dos desgastes políticos causados pela celebração de parcerias com agentes privados.Trecho do documentário Nunca me Sonharam. Créditos: Divulgação

Por outro lado, se as estratégias de pesquisa de mercado adotadas pelo Unibanco ajudam a refinar seu projeto de flexibilização para o florescente mercado das novas arquiteturas curriculares, pouco contribuem para a sua difusão às grandes massas. É aí que Nunca me Sonharam mostra sua verdadeira utilidade, sua razão de ser. Não se trata, evidentemente, de um filme para os cinemas.


Uma robusta campanha de divulgação disponibiliza o longa para a realização de sessões públicas gratuitas, que até 25 de agosto garantiu mais de 2.600 exibições do filme em escolas e universidades por todo o Brasil a uma audiência superior a 105 mil pessoas. A condição para o download é fornecer o local, a data e o número de participantes da sessão pública, que são divulgados na plataforma online. Isso consolida a disseminação do filme (#nuncamesonharam) e, por extensão, do projeto que o inspira (#jovemdefuturo) para e por seu verdadeiro público: alunos e professores.

Se o Estado não possui um projeto para a educação, é a sociedade que deve se mobilizar para transformá-la: essa é a tese de todos os projetos neoliberais para a educação e é a tese do Instituto Unibanco, como é também a tese do filme que ele patrocina e a tese que os depoimentos nele contidos são convocados a defender. Se na abertura do Seminário o ex-ministro Pedro Malan (Vice-Presidente do Instituto Unibanco) falava em sonhos e direitos, na entrevista concedida a Miriam Leitão alguns dias depois falava em “liberdades individuais” e “formação de capital humano”. O pecado da lógica privatista que rege os projetos do Instituto Unibanco para o Ensino Médio brasileiro não é, definitivamente, a falta de coerência.

Na visão dos reformadores empresariais da educação, todos os problemas educacionais podem ser resolvidos dentro da escola, à base de uma gestão eficiente dos recursos disponíveis e da boa vontade individual dos atores escolares. Currículos flexíveis, habilidades socioemocionais, importação de modelos estrangeiros e privatização da gestão escolar são as soluções apresentadas por Instituto Unibanco e Instituto Ayrton Senna, mas também pelo Banco Mundial, pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (o BID) e pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (a OCDE, que produz o ranking educacional conhecido como Pisa) – todos devidamente representados no evento do Unibanco e comovidos pelos depoimentos de Nunca me Sonharam.

Nenhuma das soluções para a educação apresentadas pelos institutos e fundações empresariais passa, contudo, pelo fortalecimento do papel do Estado na garantia do Direito Humano à Educação. O flagrante descumprimento do Plano Nacional de Educação (Lei n. 13.005/2014); os baixos salários dos professores; o fato de 2.697 municípios brasileiros possuírem uma única escola, o que inviabiliza a flexibilização do currículo nos chamados itinerários formativos – tudo isso é colocado pelo Instituto Unibanco e seus apoiadores no balaio dos “desafios importantes” a serem enfrentados, mas que não devem nos paralisar diante da realidade e do chamamento à ação que saltam da tela pela voz da juventude brasileira. A superexploração dos relatos desses jovens dá um novo verniz de chantagem emocional ao fatalismo neoliberal de sempre.

Aproveitando-se da miopia intelectual contemporânea que sobrevaloriza a experiência e desvia o olhar das causas das desigualdades educacionais para os seus efeitos puramente individuais, o Instituto Unibanco captura as histórias potencialmente empoderadoras dos jovens para sua narrativa populista e convocatória, que assume contornos incrivelmente concretos em seus verdadeiros espaços de incidência política, que ficam bem longe da sala escura.

Quem é que sequestra os sonhos dos jovens?

Fernando Cássio é pesquisador na área de políticas educacionais e professor da Universidade Federal do ABC.


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