Internacao compulsoria de menores algumas reflexoes eticas

A prefeitura, com o apoio do Ministério Público e com o aval da Vara da Infância e da Juventude, determinou a internação compulsória de menores recolhidos da Cracolândia. Cabe lembrar, entretanto, que o Estatuto da Criança e do Adolescente não oferece respaldo a tal medida. Pela Classificação Internacional de Transtornos Mentais (CID 10), a dependência química é uma doença metal, e o artigo 112 do ECA menciona que “os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições”. Além disso, segundo a Lei nº 10.216, a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes: “A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos”.
Dessa forma, além de questionável do ponto de vista legal, tal medida parece estar sendo implementada no vácuo de propostas concretas e substanciais. O texto da Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no Brasil, produzido pelo Ministério da Saúde, aponta as diretrizes básicas que constituem o Sistema Único de Saúde. Entre elas, estão a valorização da descentralização do modelo de atendimento, a estruturação de serviços mais próximos do convívio social dos usuários de drogas, a configuração de redes assistenciais mais atentas às desigualdades existentes e a adequação das ações às necessidades da população, de forma equinânime e democrática. Abaixo um fragmento retirado do texto:
“Torna-se imperativa a necessidade de estruturação e fortalecimento de uma rede de assistência centrada na atenção comunitária associada à rede de serviços de saúde e sociais, que tenham ênfase na reabilitação e reinserção social dos seus usuários, sempre considerando que a oferta de cuidados a pessoas que apresentam problemas decorrentes do uso de drogas deve ser baseada em dispositivos extra-hospitalares, de atenção psicossocial especializada, devidamente articulados à rede assistencial em saúde mental e ao restante da rede de saúde.”
Adicionalmente, O Fórum Nacional de Saúde Mental Infanto-Juvenil publicou em 2005 uma recomendação para implementação imediata de ações que visavam a reversão da tendência à institucionalização de crianças e adolescentes, seja em relação ao campo da saúde mental, da assistência social, da educação ou da justiça. Tal documento foi produzido após a verificação, entre outras constatações, da existência de crianças e adolescentes internados em instituições psiquiátricas voltadas para a população adulta, em sua maioria por determinação judicial. O fórum recomendou ainda, considerando a grave situação de vulnerabilidade desse segmento em alguns contextos específicos, o fortalecimento das redes de apoio comunitárias e familiares.
No entanto, na ausência de tais mecanismos mais eficazes, parece estar havendo uma abordagem reducionista do problema, evidenciando-se com a implementação da referida medida que, radical, certamente está distante da resolução do problema. Além disso, também são duvidosos os benefícios que a medida traria para o sujeito, pois a proposta de abstinência não apresenta chances positivas para o desenvolvimento de um tratamento quando considerada isoladamente, na ausência de estruturas outras, capazes de suportar tal intervenção. A percepção distorcida da realidade do uso de drogas promove a disseminação de medidas de combate que são inertes por natureza, e menosprezam as circunstâncias em que se encontra o indivíduo e seu meio de convívio.
O consumo de drogas é um grave problema de saúde pública e, para abordá-lo, são necessárias estratégias de prevenção, educação, tratamento e promoção da saúde adaptadas às diferentes necessidades. De acordo com a Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas, o objetivo deve ser a redução da oferta e da demanda pelas drogas. Contudo, não parece ser através de “internações compulsórias de menores apreendidos nas ruas por policiais”, que ocorra uma aproximação com tal proposta. Essas crianças e adolescentes precisam encontrar outras possibilidades para produzirem suas histórias e suas existências.
Um compromisso ético de defesa dessas vidas que, muitas vezes perdem-se e desviam-se para o rumo inexorável do uso de drogas, significa adotar uma posição de acolhimento e não de repressão. Posição esta que permita a compreensão de que cada uma dessas vidas se expressa de maneira singular e é, ao mesmo tempo, a expressão da história de muitas outras vidas; de um coletivo. A partir de tal entendimento, poder-se-ia lidar com as singularidades e com as diferentes possibilidades e escolhas que se apresentam, visando à busca de novos agenciamentos e construções para essas vidas.
“As práticas de saúde devem, em qualquer nível de ocorrência, levar em conta esta diversidade; devem acolher sem julgamento o que, em cada situação, com cada usuário, é possível, o que é necessário, o que está sendo demandando, o que pode ser ofertado e o que deve ser feito; devem multiplicar as possibilidades de enfrentamento ao problema das drogas”.
A construção da linha de ação parece, portanto, mais relevante que seja conduzida através de redes de suporte social, de equipamentos flexíveis e articulados com outras esferas ligadas à educação, ao trabalho e à promoção social. A abordagem do problema de forma associada e contínua permite uma perspectiva mais ampliada do problema e a partir da qual pode ser possível fazer prosperar a vida desses jovens, tornando-as dignas de serem vividas. As propostas do Ministério da Saúde são descritas como tendo o objetivo de formular políticas que possam desconstruir o senso comum de que “todo usuário de droga necessita de internação ou prisão”. Para isso, os esforços se tornam coerentes se voltados à diminuição da vulnerabilidade dos grupos de maior risco e ao reforço dos fatores de proteção.
A atenção às medidas sócio-educacionais como jornada integral nas escolas, atividades profissionalizantes e recreativas deve ser voltada a cada nova geração e com isso, buscar-se-ia a redução dos fatores de vulnerabilidade e iniciação do consumo. Como o próprio texto do Ministério da Saúde aponta, “a vulnerabilidade é maior para aqueles que possuem fácil acesso as substâncias e integração comunitária deficiente”. Não seria então o investimento em educação a estratégia fundamental para reforçar a proteção? Para proporcionar ganhos de qualidade de vida para os jovens, é importante facilitar a inserção e atuação destes na comunidade, com a construção de vivências possíveis sem a participação das drogas. O uso das drogas enquanto fonte de prazer deve ser substituído por projetos de vida que comportem opções mais produtivas e que detenham uma perspectiva evolutiva real para o futuro dessas crianças e adolescentes em situação de rua, que apresentam altos índices de uso de drogas de forma cada vez mais precoce e pesada.
Qualquer ação voltada para a saúde mental dos jovens é mais eficaz quando aliada a outras políticas públicas como ação social, educação, cultura, esportes e, acima de tudo, direitos humanos. O Estatuto da Criança e do Adolescente assegura-lhes o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária; além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão. Para se promover um desenvolvimento saudável para os cidadãos nesse período especial de suas vidas e alcançar o desenvolvimento de suas potencialidades, a sociedade, por meio do estado, precisa assegurar mecanismos de educação, proteção social, inclusão, promoção e garantia de diretos da criança do adolescente e da família.
A partir dessas considerações, parece relevante indagar, antes de tudo, sobre quais são as possibilidades que esses “menores”, alvo das apreensões, têm de se realizarem na sociedade. Quais seriam as respostas sobre a significação de suas vidas? Não poderiam ser as drogas formas de dissimular o profundo desconforto existencial de um indivíduo “livre” no sentido de ser só, isolado, ameaçado por todas as partes, repleto de sentimentos de insegurança, impotência, isolamento e angústia? Não poderiam ser as drogas uma procura por alívio? Não poderiam ser as drogas uma alternativa? Diante de perguntas sem respostas, cabe, por fim, uma reflexão baseada nas palavras de Eduardo Kalina:
“O homem conhece a droga como uma possibilidade de escapar ou de mascarar sua debilidade através do mundo da ilusão”.

Leila Nasajon

Fonte:http://era.org.br/2011/05/internacao-compulsoria-de-menores-algumas-reflexoes-eticas/



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