Aborto: Útero a câmara de extermínio


Os defensores do aborto legal partem da premissa de que as mulheres são donas dos seus corpos, portanto detém o direito na decisão para interromper o processo natural da vida, que Deus deixou.

A descriminalização do aborto vai contra estes princípios.

Garantir a vida é um gesto de amor.



17/03/2005

Aborto, a síntese democrática

Sempre que escrevo sobre temas polêmicos como células-tronco, aborto, evolução e os tempero com algumas observações relativas à religião, arrependo-me. Mas que não se entusiasmem os proselitistas, meu arrependimento não chega a constituir-se numa contrição que me levará a finalmente abraçar a palavra de Deus. Trata-se, antes, de uma simples frustração por não me ter feito entender como desejaria e, assim, ver-me obrigado a dedicar ao assunto duas colunas --e não apenas uma, como pretendia.

Descontados uns poucos insultos e a ameaça de arder eternamente nas chamas do inferno, recebi, por conta de minha coluna da semana passada, interessantes críticas e inteligentes provocações que não merecem ficar sem resposta. Vamos a elas.

Alguns leitores me perguntaram se a ciência não seria a religião dos tempos modernos. Se não estaria também ela calcada em dogmas, exatamente como a Santa Sé, o monte Olimpo ou o terreiro de Mãe Menininha do Gantois. Não sou um positivista empedernido. É claro que a ciência, como qualquer atividade humana, se baseia em crenças, valores e seguramente também em preconceitos.

Como qualquer um que já abriu um livro de epistemologia sabe, a ciência busca seus fundamentos em meia dúzia de postulados (um outro nome para dogma), como o princípio de identidade, de não-contradição e a navalha de Ockham. O primeiro afirma que, se A=A, então A=A, e o segundo reza que, se A = não-B, na ocorrência de A não ocorre B, e vice-versa --convenhamos que não são idéias revolucionárias e nem mesmo particularmente brilhantes. O terceiro dogma, proposto pelo filósofo Guilherme de Ockham (c. 1285-1349), que manda preferir a explicação mais simples à mais complicada, não passa de uma espécie de seguro contra a imaginação. Com efeito, não há nenhuma lei natural determinando que fenômenos não podem ser complexos. Muito pelo contrário, eles freqüentemente o são. O que torna a lição de Ockham útil e "válida" até hoje é o fato de que ela nos manda ser comedidos na multiplicação de entidades explicadoras, fonte comum de erro.
É exatamente aqui que os dogmas da ciência começam a distanciar-se dos da religião. Ao abraçar para si o princípio de ockamista, a ciência admite claramente que pode conter erros, algo que religiões não costumam fazer, sobretudo não aquelas que se pretendem reveladas. (Se foram dadas a conhecer por um Deus infalível, não podem, por definição, estar erradas).

A ciência portanto, diferentemente da maioria das religiões, não afirma verdades últimas, mas gera hipóteses que podem ser testadas e refutadas empírica e logicamente. Em tese, todas as explicações científicas podem ser continuamente aperfeiçoadas. A Verdade --imaginando que ela exista-- não se atinge senão por aproximação. No limite, a ciência admite até que seus próprios dogmas sejam revistos. Algumas hipóteses da mecânica quântica, por exemplo, vão de encontro ao princípio da não-contradição.

Seria como se a religião negasse Deus em determinadas situações.

Embora essa diferença me pareça substancial, concedamos a eventuais céticos radicais que dogmas, postulados e axiomas são indiscerníveis entre si e valem todos a mesma coisa, isto é, nada. Ainda assim, a ciência teria sobre as religiões uma vantagem. Ela tem como subproduto tecnologias --uma medida indireta de sua "exatidão"-- cuja universalidade é aferível. O foguete que eu construo com base em minhas idéias sobre a física, desde que corretamente lançado, me levará à Lua quer eu seja judeu, ateu, católico, muçulmano ou corintiano. Já com as religiões, as mesmas ações que levariam o partidário de uma ao paraíso atiram-no no inferno segundo a doutrina da outra. Daí se segue que um Estado democrático e multi-étnico precisa necessariamente abraçar o laicismo.

Se não o fizer corre o risco de deixar de ser democrático ou, pior, de acabar com as etnias e grupos minoritários.

Outro ponto de minha coluna anterior que rendeu severas críticas é aquele em que afirmei que a posição mais intransigente do Vaticano em relação ao aborto não tinha mais de 200 anos. Acusaram-me --injustamente-- de não ter lido nem o Catecismo. Gente, eu costumo fazer minha lição de casa. Não sou especialista em coisa nenhuma, mas procuro informar-me minimamente acerca dos assuntos que abordo. É claro que fui ao Catecismo, mas, como sou suficientemente esperto para não acreditar em tudo o que padres dizem, recorri também a outras fontes. Sei que o catecismo nº 2.271 afirma que a posição de Roma permanece a mesma desde o século 1º, mas receio que essa história não esteja muito bem contada.

É claro que o catolicismo nunca foi um entusiasta do aborto. Nenhuma religião e nenhum ser humano dotado de bom senso o são. (O defendo é apenas a descriminação do aborto e sua inclusão nos serviços públicos de saúde). É indiscutível também, como afirmam os padres, que importantes autoridades dos primórdios da igreja condenaram com veemência toda forma de aborto provocado, sugerindo que a vida era sagrada desde a concepção.

Destacam-se aí o "Didaché", texto do século 1º, possivelmente o primeiro manual de instruções do cristianismo, e outros anônimos, como os autores da "Epístola de Barnabé" e da "Epístola a Digneto", ambas do século 2º.

Dos que conhecemos os nomes, defenderam a proibição radical do aborto Atenágoras, Clemente de Alexandria, Hipólito, Cipriano e, principalmente, Tertuliano, quem afirmou que a alma habitava o embrião desde a concepção.

O problema não está no que o Catecismo diz, mas no que ele deixa de afirmar. Lá não consta, por exemplo, que santo Tomás de Aquino, o Divino Doutor, defendia existir um intervalo entre a concepção e o surgimento da alma. Ao fazê-lo, seguia não só Aristóteles, como mostrei na coluna passada, mas outros patriarcas cristãos, como Jerônimo, Ambrósio e Cirilo de Alexandria, provavelmente influenciados pela então recém-lançada Septuaginta, a tradução grega da Bíblia hebraica, onde, como também já tive ocasião de mostrar, há uma passagem, Êxodo 21:22-25, que estabelece claramente a distinção entre aborto e assassinato, o que pressupõe uma diferença entre embrião e pessoa.

O Catecismo também não informa que a posição menos radical de Aquino encontrou algum eco em Roma. Não diz, por exemplo, que as disposições antiaborto foram relaxadas a partir de meados da Idade Média e que foi só o papa Sexto 5º quem, em 1588, tentou reintroduzir as penas mais severas antes utilizadas. Também não conta que a reação contrária foi tão grande que o sucessor de Sexto 5º, Gregório 14, teve de voltar atrás e prever a pena de excomunhão apenas para o aborto de fetos "já formados" e não para todos. Os padres também não revelam que a distinção entre aborto tardio e precoce (o segundo um pecado menos grave que o primeiro) só viria a ser apagada em 1869 pelo papa Pio 9º, que se baseou na descoberta do ovo em mamíferos (que data de 1827) e do que começava a despontar como a moderna embriologia.

Essas informações todas encontram guarida em escritos do insuspeito frade dominicano e acadêmico católico David Albert Jones, autor de "The Soul of the Embryo". Mais do que demonstrar vã erudição, essas minhas observações históricas visam a demonstrar que todas as "verdades" são historicamente construídas, ainda que igrejas pretendam advogar por uma moral absoluta.
Voltemos, porém, a nosso problema original, que era buscar fundamentos que sustentem uma legislação laica e moderna para regular a questão do aborto e da utilização de células-tronco embrionárias humanas em pesquisas. Nossa situação não é fácil. Dogmas religiosos estão por definição descartados e a ciência não é de grande valia. Ela não permite identificar um instante mágico no processo de formação do feto no qual a matéria não-viva passa a viva.

O que é exatamente a concepção? Em termos estritamente técnicos, é a fixação do ovo já fecundado no útero. Para os religiosos, porém, interessa recuar mais. Mas até onde? A chegada do espermatozóide ao óvulo? A fusão do material genético? O início do processo de divisão celular? Se sim, em qual de suas fases? E também poderíamos perguntar: por que restringir-nos à circunvizinhança da concepção? Poderíamos recuar ainda mais, ao óvulo e ao espermatozóide, ou avançar para outros momentos marcantes do desenvolvimento do embrião. "Candidatos" a início da vida incluiriam o despontar dos batimentos cardíacos, o fechamento do tubo neural, a possibilidade de detectar as primeiras ondas cerebrais e tantos outros.

Aqui, a única saída é renunciar absolutamente a ímpetos jusnaturalistas e admitir que toda decisão será arbitrária e definida apenas pela lei positiva. Ainda que a vida de fato "comece" com a concepção, o aborto configuraria um caso de homicídio justificável, como a legítima defesa ou estrito cumprimento do dever --e, antes que me ataquem de novo, lembro que não estou fazendo um juízo de valor; digo "justificável" porque a lei assim o definiria. Aproveito para lembrar que a Igreja Católica não condena de forma absoluta a pena de morte. (Nem poderia, afinal, mandou-a aplicar centenas de milhares de vezes durante séculos).

Nos países desenvolvidos, a regra tem sido tornar o aborto no início da gravidez (até mais ou menos a 12ª semana) uma decisão soberana da mulher. Depois disso, ele só se justificaria por indicação médica. A partir da viabilidade fetal (lá pela 24ª semana), o embrião deve ter seu direito de nascer preservado quase absolutamente. A única exceção seria a preservação da vida da mãe.

Essa solução, que defendo para o Brasil e, acredito, acabará sendo adotada dentro de mais alguns anos ou décadas, é a mais racional. Preserva integralmente o direito de todas aquelas que são contrárias ao aborto de nunca fazê-lo, mas não impede as mulheres que não tenham objeções de consciência de realizá-lo. O mesmo vale para possíveis terapias baseadas em células-tronco embrionárias. É a melhor síntese democrática que podemos realizar. Não é uma solução perfeita e nem ao menos bonita, mas é melhor do que seguir fingindo que ninguém faz aborto porque a lei o veda ou do que mandar para a cadeia, a cada ano, entre 750 mil e 1,4 milhão de mulheres e seus eventuais cúmplices.

Hélio Schwartsman, 41, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.

Fonte http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult510u186.shtml





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