Vilmar Berna*, do Portal do Meio Ambiente
Para compreender, adequadamente, a importância da leitura e da escrita em nossas vidas, precisamos compreender que assim como o nosso corpo material precisa de alimento, o espiritual também. É importante aqui corrigir uma falsa idéia, a de que os termos ‘espiritual’ ou ‘espiritualidade’ referem-se exclusivamente ao seu sentido religioso. É compreensível que isso ocorra, por que é aí que os que têm fé na divindade elaboram e abrigam suas idéias e sentimentos em relação ao sagrado.
Entretanto, ateus também tem fé, por exemplo, de que o mundo pode ser melhor e de que as pessoas podem mudar. Possuem seu lado espiritual, só que no sentido não religioso do termo, onde elaboram idéias, afetos, esperanças. E também espiritualidade, no sentido da religação com a natureza, com o Cosmo.
O que ressalto aqui é que nós e o mundo não somos feitos apenas de uma parte material que pode ser percebida pelos cinco sentidos, mas também das visões que temos desse mundo, de nós e dos outros. Por isso, nunca estamos prontos, mas na medida em que recebemos informações e estímulos, e vivenciamos experiências, construímos ou reconstruímos nossa visão de mundo.
Outra falsa idéia é a de que podemos comunicar a verdade. Podemos percebê-la, mas ao comunicar sobre ela, levamos junto uma parte de nossa subjetividade como observador. Então, não existe comunicação imparcial. O que é verdadeiro para um pode não ser para o outro. Por que, ao contrário do que se possa imaginar, a realidade como percebemos está em constante processo interno onde permanente é só a própria mudança.
Entre os grandes desafios para a humanidade é conseguir respeitar as diferenças entre os povos, as pessoas, as visões de mundo para que elas não se tornem obstáculos às relações. Por que não existe uma pessoa igual à outra, e também não pode existir verdade única, religião única, pensamento único. E isso inclui esta própria afirmação que acabo de fazer, daí a dificuldade de se andar em terreno firme e seguro quando o assunto é a subjetividade.
Então, ler e escrever é muito mais que dominar técnicas literárias, é obter as chaves desse mundo interior, de nossa verdade, e ter acesso a dos outros. Uma forma de nos ajudar a perceber, compreender e elaborar nossa própria subjetividade contribuindo para dar sentido ao mundo, a nós próprios e aos outros. Claro que existem outras formas de fazer isso, principalmente nas culturas orais, mas na cultura letrada, ler e escrever são fundamentais para ser e sentir-se adequadamente inseridos no mundo.
Precisamos disso, pois ao contrário do que possa imaginar, o processo de formação do sujeito é na verdade uma auto-formação. A educação, os livros, a cultura, os meios de comunicação exercem influências sobre nós, mas o que somos resulta de nossas escolhas. Comunicadores em geral, educadores, e escritores, em particular, cumprem com o papel social de nos ajudar a construir nossa subjetividade, nossa compreensão da verdade e utopias e, embora não escolham por nos, contribuem para iluminar nossos caminhos.
Outra falsa idéia é que a pratica é mais importante que a teoria. A prática começa nas idéias. A motivação para agir não está na própria ação, mas em nosso mundo interior. E como a leitura e a escrita nos conectam a este mundo, nos incentivam - ou não - a agir seja para manter as coisas como estão ou para mudá-las. Por isso, os primeiros a sofrerem censura e prisões em regimes opressores são os jornalistas, os artistas, incluindo os escritores, por que idéias podem ser armas mais poderosas que fuzis e granadas. Não é por um acaso que nos regimes democráticos exista tanta preocupação dos donos do poder de controlar os meios de comunicação.
A internet tem sido uma arma poderosa de resistência, uma forma de driblar a censura, algo inimaginável em outras épocas. Os poderosos estão tentando encontrar um jeito de impedir a liberdade na internet. Em países de regime totalitário certas palavras são bloqueadas pelos servidores e em países democráticos os poderosos estão buscando meios para impedir que informações desfavoráveis a eles continuem circulando na internet. Assistimos isso recentemente no episódio do Wikileaks, que criou um mecanismo aparentemente à prova de censura para a divulgação de segredos de Estado. Em vez dos poderosos escandalizarem-se com o fato de funcionários públicos estarem tramando em segredo contra o povo e a paz - usando funções públicas para cuidar de interesses privados, para se corromperem – para tentarem aperfeiçoar sistemas de controle democrático a fim de se livrarem das falhas do sistema, tentam por todos os meios - inclusive ocultos - de criminalizar os que democratizaram a informação secreta.
Um de nossos maiores desafios é aos escrevermos, ou falarmos, expressarmos o que estamos pensando ou sentindo. Por mais incrível que pareça, tem gente que diz uma coisa e pensa ou sente outra diferente. Por isso não nos comunicamos apenas com a fala ou a escrita, mas também com os gestos, os olhares, o tom de voz. E é aí que a internet e a escrita, por mais importantes que sejam para a comunicação, não substituem o contato pessoal, o olho no olho.
Expressar-se na forma escrita não é um simples ato de colocar palavras num papel ou digitar num teclado. A maior parte da ação de escrever é invisível para os olhos, acontece no mundo interior de quem escreve e pode refletir este esforço de buscar o equilíbrio entre as emoções, o pensamento e as praticas.
E mais. Com os blogs e as ferramentas de busca, escrever e ser lido tornaram-se atos quase simultâneos. Antes, o intervalo de tempo entre um e outro podia levar anos e dependia do escritor ter a sorte de encontrar um editor para intermediar seu acesso aos leitores. Além de contribuir para a democratização da informação e do pensamento, a internet, os novos celulares, a banda larga, tem facilitado a vida de quem gosta de escrever e quer ser lido. Publicar deixou de ser privilégio de poucos.
Escrever assemelha-se a alguém que organiza uma casa desarrumada. Arrasta e empurra idéias de um lado para o outro, constroem e reconstroem pensamentos, sonhos, como quem movimenta os móveis. E só depois de estar cheio dessas idéias, e quando elas começam a fazer sentido, é que a pessoa se sente pronta, na verdade, quase que obrigada a escrever, como uma espécie de libertação da mente. E aí começa outra etapa importante, a de garimpar as palavras mais certas e apropriadas para transmitir a mensagem. A chance de acertar logo de primeira é a mesma de um garimpeiro achar uma pepita de ouro na primeira tentativa.
Alguns chegam a comparar o ato de escrever com o nascimento de um filho. O período da gestação é o tempo gasto na elaboração das idéias e o parto é o ato de colocá-las para fora.
Pablo Neruda dizia que escrever é fácil, começa com letra maiúscula e acaba com um ponto e no meio se colocam idéias.
As idéias nascem em nós, nos outros autores e também estão por aí, ao alcance de todos que estiverem dispostos a ser veículo para elas.
Algumas idéias são tão universais que se repetem em vários escritos, povos e culturas diferentes, independente do tempo e lugar, permanecem atuais e válidas para todos.
O ideal é quando o escritor consegue reunir à sua volta pessoas que compreendem que o ato de escrever não é apenas físico, mas requer recolhimento, silêncio interior, para ouvir-se e ouvir seus fantasmas, angústias, desejos, ‘conversar’ com seus amigos espirituais. Assim, para quem não conhece sobre o ato de escrever, pode parecer estranho quando o escritor se recolhe neste seu mundo, pois externamente, pode parecer que está distante e desinteressado sobre as pessoas ou ao que acontece à sua volta, mas pode ocorrer exatamente o contrário. Para um escritor os acontecimentos do cotidiano não costumam passar despercebidos, pois a vida é o seu laboratório.
E, assim como construímos redes de afetos no mundo físico, também o fazemos no mundo espiritual. Os escritores que gostamos formam nossa espécie de rede de ‘amigos’ espirituais, com os quais compartilhamos idéias, afinidades e valores, ainda que muitos já possam ter morrido a milênios ou vivam do outro lado do Planeta. Por isso, um escritor nunca esta só em seu mundo interior e ainda que tirem tudo dele, e aprisionem seu corpo, como já aconteceu muitas vezes nas Ditaduras, podem se refugiar em seu mundo interior, onde são livres, e, assim, sobreviverem espiritual e intelectualmente.
Mais que escrever para seu próprio prazer escreve-se por necessidade e dever. Escrever é a função social do escritor, seja para entreter, seja para ajudar na analise da conjuntura, mostrar alternativas, denunciar as falsas idéias e injustiças. Por isso, um texto não está completo quando é divulgado, mas quando é lido. E quando isso acontece, nenhum texto é igual ao outro, pois ao passar pelos olhos e pelo mundo interior do leitor, ganha nuances e identidade própria e particular.
Um mesmo texto lido por diferentes leitores será compreendido de forma diferente. Um texto que alguém ache maravilhoso pode ser comum para outra pessoa.
Sem os leitores, os textos não vão a lugar algum, não transformam coisa alguma, não amam nem são felizes. Não são os textos que mudam as coisas. São as pessoas.
* Vilmar Sidnei Demamam Berna é escritor e jornalista, fundou a REBIA - Rede Brasileira de Informação Ambiental e edita deste janeiro de 1996 a Revista do Meio Ambiente (que substituiu o Jornal do Meio Ambiente) e o Portal do Meio Ambiente(http://www.portaldomeioambiente.org.br/). Em 1999, recebeu no Japão o Prêmio Global 500 da ONU Para o Meio Ambiente e, em 2003, o Prêmio Verde das Américas –http://www.escritorvilmarberna.com.br/